PENSAR MELHOR

“Tudo desde sempre. Nunca outra coisa. Nunca ter tentado. Nunca ter falhado. Não importa. Tentar outra vez. Falhar outra vez. Falhar melhor”

                                                                                           Samuel Beckett

Nunca como nestes tempos em que somos sujeitos a um bombardeamento diário de informação( e desinformação), em que não sabemos bem a proveniência das notícias que nos chegam e a credibilidade das fontes que as produzem, em que verdade e mentira se confundem alegremente nos sites, nas redes sociais e nas nossas cabeças, é tão importante aprendermos a selecionar essa informação e a dar credibilidade àquilo que corresponde à realidade do mundo que nos rodeia, ao que é rigoroso, factual e verdadeiro.

Numa altura em que a expressão “fake news” se banalizou e em que todos se agarram cegamente às suas “verdades” não é demais recordar que se todos temos direito às nossas opiniões não temos o mesmo direito aos “nossos” factos. Por isso cada vez mais têm surgido na comunicação social, especialmente na internet e nas televisões, as rubricas e os programas de fact-checking e apuramento do rigor da informação que circula na esfera mediática, de que são exemplos entre nós o Polígrafo SIC, a Hora da Verdade na TVI e a Prova dos Factos no jornal Público.

Esta tendência que acompanha o que se passa no resto do mundo e que veio satisfazer uma necessidade premente em virtude da enxurrada de “notícias” que nos chegam de todo o lado e da dificuldade natural de conseguirmos por nós mesmos distinguir o que é verdade do que é  mentira, boato, propaganda ou apenas mera lavagem cerebral, é cada vez mais urgente num mundo que está em constante alvoroço, em que tudo o que acontece numa parte do mundo chega instantaneamente ao resto do planeta, em que todos carregamos connosco uma câmara de fotografar e filmar, um gravador e a vontade de descrever, de falar, de contar o que vemos e de dar opiniões, mesmo que ninguém nos tenha perguntado por elas. Todavia o que proponho aqui é algo diferente, complementar e igualmente fundamental, mas que vai além do conceito de verificação dos factos. É realmente importante sabermos se o que chega ao nosso cérebro corresponde à realidade do que aconteceu de facto, termos a certeza de que o conhecimento que adquirimos é sólido e baseado na ciência e que de forma alguma estamos a ser manipulados, “orientados” ou “levados” a fazer algo contra os nossos melhores interesses, seja numa cabine de voto, numa caixa de supermercado ou no meio da rua a gritar palavras de ordem contra ou a favor de alguém.

Mas tão ou mais importante é saber o que fazermos com esse conhecimento, de que maneira o devemos interpretar e aproveitar para com ele tomarmos decisões mais bem estruturadas, ancoradas na realidade, coerentes e alinhadas com os nossos princípios e valores, em suma melhores e mais produtivas para nós. Esse foi o desafio abraçado há algumas décadas atrás pelo professor Daniel Kahnemann e pelo seu companheiro de percurso já falecido, o psicólogo Amos Tverski, que deu origem ao campo da economia comportamental e ao estudo de como nos comportamos em função de certos estímulos exteriores, de como muitas vezes assumimos perceções e perspetivas erradas, de como não sabemos tratar a informação estatística e de como as nossas decisões são muitas vezes condicionadas por vieses e deturpações dos dados que a nossa mente recebe mas não consegue processar corretamente.

Esta colaboração que abriu novos horizontes, quer na área da investigação económica quer no estudo comportamental a que se dedica grande parte da psicologia, tornou-se particularmente visível com a atribuição do prémio Nobel da Economia ao professor Daniel Kahneman em 2002, partilhado a meias com o economista Vernon L. Smith por trabalhos na mesma área( Amos Tverski tinha falecido em 1996 e o Nobel não é atribuído postumamente) e está magistralmente resumida no livro mais conhecido do autor ,“Pensar depressa, pensar devagar”, editado entre nós em 2012. Nesta obra são apresentadas de forma acessível algumas das conclusões a que chegou no seu trabalho sobre a heurística e os vieses cognitivos que frequentemente deturpam a nossa capacidade de tomar melhores decisões e é introduzida ao grande público a teoria de que utilizamos no nosso dia a dia dois sistemas de pensamento muito diferentes na avaliação que fazemos da realidade ao nosso redor, o sistema 1 que é rápido, instintivo e emocional e o sistema 2 que é mais lento, mais consciente e mais lógico. Todos utilizamos os 2, frequentemente e indistintamente conforme as situações que nos vão surgindo e que necessitam de uma resposta da nossa parte, nem sempre racional nem a mais adequada às circunstâncias. No sistema 1 estamos muito focados na capacidade imediata de resposta e estas surgem-nos como que automaticamente e sem esforço, quase como se não precisássemos de pensar e a nossa reação fosse um reflexo dos conhecimentos prévios que temos armazenados na nossa mente e que geram respostas automáticas. Como exemplos desta forma de pensar temos a capacidade de conduzir por caminhos conhecidos sem necessidade de estar constantemente a monitorizar o que está à nossa volta ou mesmo termos consciência do que estamos a fazer, de compreender frases simples ou fazer somas aritméticas básicas. Também se revela no andar de bicicleta, de patins ou em qualquer comportamento que uma vez adquirido fazemos sem esforço e sem pensar, podendo inclusive estar a ruminar outros pensamentos e considerações enquanto agimos com toda a naturalidade do mundo.

Este conhecimento deriva de aprendizagens deliberadas que fizemos no passado, do acumular de experiências bem-sucedidas, de respostas que resultaram positivamente nos contextos que as solicitaram, de processos que foram repetidos com sucesso até à exaustão mas não está isento de riscos uma vez que mudando os contextos e as circunstâncias podemos dar connosco a dar uma resposta padronizada e automática baseada nas nossas vivências anteriores a uma situação nova que requeria mais deliberação, cuidado e ponderação. E é precisamente aqui que entra em ação o sistema 2 caracterizado precisamente por exigir foco, atenção deliberada e concentração e por isso mesmo mais demorado e exigente do ponto de vista do gasto energético do nosso organismo embora mais propenso a ser rigoroso e acertado. Como exemplos de situações que exigem de nós a ativação deste sistema estão as grandes decisões das nossas vidas, a nível familiar ou profissional, por exemplo se compramos ou arrendamos um apartamento, se escolhemos este ou aquele curso, mas também outras não tão decisivas, mas igualmente mobilizadoras como a resolução de um teste de avaliação, tentar ouvir uma conversa no meio de uma festa, estacionar num local apertado ou optar pela melhor escolha na compra de um eletrodoméstico.

Neste modo de pensar consciente, mais dependente do esforço, da vontade e da lógica formamos os nossos raciocínios mais cuidados, aqueles que pedem de nós uma maior e melhor análise a todos os fatores da equação, uma antecipação de possíveis e previsíveis consequências das nossas decisões no futuro e uma ponderação rigorosa e precisa de tudo isto para se conseguir chegar às melhores soluções possíveis no nosso contexto, nas nossas circunstâncias e de acordo com aquilo que achamos mais conveniente para os nossos interesses.

Toda esta deliberação cuidada, que exige atenção e concentração constantes, torna o sistema 2 mais lento embora mais em sintonia com os nossos objetivos e valores pessoais e por isso mais suscetível de estar na origem das nossas decisões pessoais mais importantes.

No entanto isto tem um preço em relação ao nosso organismo, a atenção é um recurso limitado que nos gasta muitas calorias e que por isso mesmo nos leva com frequência a reverter para o nosso modo de pensamento automático do sistema 1, o que conduz a que muitas vezes tomemos decisões da máxima importância sem pensar cuidadosamente nas consequências futuras dos nossos atos e soframos posteriormente os efeitos desse descuido nas várias dimensões das nossas vidas (pessoal, relacional e  profissional). É aqui que entra em jogo a questão das heurísticas e dos enviesamentos como ferramentas que nos ajudam a desmontar as armadilhas cognitivas que a vida nos coloca, a saber ajustar e afinar o nosso processo de tomada de decisão de modo que não sejamos surpreendidos por más escolhas de que nos arrependeremos tardiamente depois de termos sofrido na pele os seus efeitos.

A breve enunciação que aqui se irá fazer de algumas dessas ferramentas não substitui a leitura da obra acima identificada, nem a de livros de divulgação sobre esta temática mais acessíveis e disponíveis no nosso mercado editorial como “A arte de pensar com clareza” de Rolf Dobelli, “Pensar melhor” de Adam Grant, “Racionalidade” de Steven Pinker e “O Cisne Negro” de Nicholas Nassim Taleb. De entre as muitas identificadas pelos autores referidos estão a tendência da confirmação( quando só damos importância aos relatos ou factos que confirmam o que já pensamos e ignoramos as evidências em contrário-num mundo tão dividido, fragmentário e radicalizado não serão difíceis encontrar exemplos à medida de cada um(covid-19, vacinas, conspirações várias, etc.)), a falácia do custo irreparável(quando já gastámos tanto num projeto que mesmo contra todas as evidências de que irá algum dia ter sucesso persistimos no caminho errado), a heurística da disponibilidade(a tendência de usarmos exemplos de fácil acesso para criar uma determinada visão do mundo-fulano fumava 2 maços por dia e viveu até aos 100, por isso o tabaco não faz assim tão mal), a ilusão do controlo (controlamos muito menos do nosso meio ambiente e da nossa vida do que pensamos-todos somos muito mais influenciados pelo acaso do que conscientemente queremos acreditar), o efeito âncora(utilização de números irrelevantes como base para uma decisão-todos se conseguem lembrar de alunos que por terem um passado de boas notas têm maior probabilidade de terem professores mais benevolentes no futuro e qualquer vendedor reconhece a importância de fixar na mente do cliente um preço como ponto de partida para uma boa venda), a regressão à média( depois de uma sequência de resultados excecionais o normal é que estes baixem um pouco da mesma forma que após uma sequência negativa é provável que as coisas melhorem- este é dos efeitos mais visíveis no mundo do desporto), o efeito da posse (para o mesmo bem pedimos sempre mais dinheiro para vender do que o que estaríamos dispostos a dar para o comprar), a rejeição das probabilidades de base(há que olhar primeiramente para as probabilidades estatísticas antes de se avançar com previsões incomuns – quando temos algum sintoma clínico, vamos pesquisar ao Google e concluímos que temos uma doença muito rara e potencialmente fatal quando existem inúmeras outras doenças com o mesmo sintoma muito mais simples e curáveis), a aversão à perda( damos mais valor às perdas do que aos ganhos do mesmo modo que uma avaliação negativa tem mais probabilidade de nos influenciar do que cem avaliações positivas- uma má atitude de alguém é muitas vezes suficiente para acabar uma amizade sólida e duradoura de décadas), a falsa causalidade( correlação não é causalidade, aqui por vezes partilhamos o mesmo comportamento  condicionado dos cães de Pavlov, não era a sineta que ele que trazia a comida ao cão embora ele agisse com base nesse pressuposto da mesma forma que não é por termos nascidos em determinados meses do ano que temos personalidades parecidas embora exista uma indústria milionária que nos quer fazer acreditar nisso), o efeito de halo (as pessoas vistas como mais atraentes têm mais probabilidades de ter sucesso profissional) e tantos outros vieses cognitivos que justificam uma explicação mais detalhada e pormenorizada e que por isso mesmo remeto para as leituras acima sugeridas.

Esta área da investigação continua a dar frutos e é cada vez mais fundamental para a compreensão dos nossos processos cognitivos, do que está por trás das nossas decisões de todos os dias e para toda a vida, de tal maneira que um conhecimento básico destes mecanismos não pode permanecer oculto da maioria das pessoas porque a todos afeta e o seu conhecimento pode fazer a diferença entre uma vida plena e realizada e o seu contrário.

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José Caetano

Licenciado em Direito pela Faculdade da Universidade de Coimbra. Advogado e formador nos módulos de Coaching e Comunicação e Ética, Deontologia e Legislação do Fitness no curso de Técnico Especialista em Exercício Físico do CEFAD (nível V).

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